25 de junho de 2012

Ciência x Religião - PARTE 2


Há muitas questões epistemológicas interessantes quanto à ciência. Um tópico central tem sido a subdeterminação da teoria pelos dados: os dados a favor de uma teoria raramente implicam a teoria, caso em que haverá várias teorias empiricamente equivalentes — teorias com as mesmas consequências com respeito à experiência. Podem as teorias empiricamente equivalentes diferir em estatuto ou valor epistémico? Em caso afirmativo, o que faz a diferença? Neste caso é comum apelar para as chamadas virtudes teóricas, como a simplicidade, fecundidade, beleza, etc. O que pensar da “indução pessimista,” segundo a qual quase todas as teorias científicas do passado foram mais tarde rejeitadas? Deve isso reduzir a nossa confiança nas teorias científicas actuais? Das convicções científicas actuais, quantas constituem conhecimento, se é que algumas o são? E até onde vai o método científico? Haverá assuntos que a ciência não tem competência para lidar? É a ciência mais competente para lidar com uns assuntos do que com outros? Os modos científicos de proceder parecem ter sido mais bem-sucedidos nas ciências duras; as ciências humanas parecem ficar para trás. Haverá diferenças quanto à boa fundamentação epistémica entre as diferentes ciências, ou talvez entre as ciências duras e as ciências mais leves? Perguntas deste género, apesar de serem de grande interesse intrínseco, não são directamente relevantes para a nossa investigação. O que é mais importante ver é que a epistemologia da ciência é na realidade a epistemologia das principais faculdades cognitivas humanas: memória, percepção, intuição racional (lógica e matemática), testemunho, talvez a empatia de Reid, indução, etc. O que é característico da ciência é que estas faculdades são empregues de um modo particularmente disciplinado e sistemático, e que há uma ênfase particular na experiência perceptiva.
Com respeito à crença religiosa, também há várias questões epistemológicas. Haverá bons argumentos a favor da existência de Deus? Se não há, é isso importante? É a existência do mal, em todas as horríveis formas que exibe, indício contra a crença teísta? É algo que refuta da crença teísta? E quanto à questão do pluralismo: a religião conhece tantos tipos diferentes — cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo (com diferentes versões de cada tipo), mas também vários tipos menos comuns. Segundo Jean Bodin, “cada uma é refutada por todas” (Bodin 1975, 256); constituirá esta diversidade algo que refuta cada variedade particular de crença religiosa? Algumas doutrinas religiosas — Trindade, Incarnação, Expiação — não são fáceis de entender; significa isso que não podem ser conhecidas ou sequer ser objecto de crença racional? Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é na melhor das hipóteses seriamente insegura, de modo que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Estas questões têm sido mais aturadamente investigadas no que respeita à crença cristã; assim, este artigo incide principalmente em algumas questões que dizem respeito à epistemologia da crença cristã.
Para os nossos propósitos, talvez a questão epistemológica central seja esta: qual é a fonte da racionalidade, ou aval, ou estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que o tem? É do mesmo género do que o que tem a crença nos ensinamentos da ciência actual? São os indícios a favor da crença religiosa, se é que existem, do mesmo género do que os indícios a favor das crenças científicas? Ou há uma fonte especial de estatuto epistémico positivo da crença religiosa? Esta é, na verdade, uma versão contemporânea de uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos cogentes (argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá) a favor da crença religiosa, e se a existência de argumentos cogentes é necessária para a aceitação racional da crença religiosa.
Aqui, há fundamentalmente duas perspectivas. Segundo o “indiciarismo,” a fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que tem tal estatuto, é apenas a razão — o conjunto das faculdades racionais, incluindo, principalmente, a percepção, a memória, a intuição racional, o testemunho, etc. A fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa é, consequentemente, a mesma que existe para a crença científica. Esta perspectiva remonta pelo menos a John Locke (1689) e tem representantes contemporâneos proeminentes. Deste ponto de vista, a existência de argumentos cogentes a favor da crença religiosa é uma condição necessária da aceitação racional dessa crença, ou pelo menos está intimamente relacionada com a aceitação racional. Algumas pessoas que aceitam este ponto de vista crêem que esses argumentos cogentes não existem; assim, rejeitam a crença religiosa por ser infundada e racionalmente inaceitável (Mackie 1982); outros sustentam que há de facto excelentes argumentos a favor do teísmo, e até especificamente a favor da crença cristã. Aqui o porta-voz contemporâneo mais proeminente seria Richard Swinburne, cuja obra dos últimos trinta anos, aproximadamente, teve como resultado o desenvolvimento mais poderoso, completo e sofisticado da teologia natural que o mundo viu até hoje (veja-se, e.g., Swinburne 1979, 2004; 1981, 2005).
A outra perspectiva principal, adoptada, por exemplo, por Tomás de Aquino (Summa Theologiae) e João Calvino (1559), é que 1) a crença em Deus e 2) os ensinamentos cristãos podem ser objecto de aceitação racional ainda que não existam argumentos cogentes a seu favor que partam do que a razão nos oferece; têm uma fonte de aval ou estatuto epistémico positivo independente do que a razão nos dá. Este ponto de vista tem também representação contemporânea proeminente (Alston 1991; Plantinga e Wolterstorff 1984; Plantinga 2000). Usando a terminologia de Calvino, há o sensus divinitatis, que é uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo. As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais crenças são irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas de especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse necessariamente cega ou um salto no escuro. Na verdade, João Calvino define a fé como “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para connosco [...]” (Calvino 1559, p. 551, itálico meu). Deste ponto de vista, a religião e a fé têm uma fonte de crença apropriadamente racional independente da razão e da ciência; seria portanto possível que a religião e a fé corrigissem a ciência e a razão, e também que fossem por estas corrigidas.
Há alguma razão para pensar que se o teísmo for de facto verdadeiro, se realmente houver uma pessoa todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo e os seres humanos à sua imagem, então a crença religiosa será independente dos argumentos baseados na razão; não exigirá tais argumentos para ser racional ou ter estatuto epistémico positivo. Pois se o teísmo for verdadeiro, Deus presumivelmente quererá que os seres humanos conheçam a sua presença (e de facto a vasta maioria da população humana acredita em Deus ou algo parecido a Deus); disporá portanto as coisas de modo a que os seres humanos sejam capazes de ter conhecimento de si. Mas se o conhecimento de Deus dependesse dos argumentos teístas, ou de outros argumentos que resultam do que a razão nos dá, então, como afirma Tomás, só alguns seres humanos chegariam ao conhecimento desta verdade, e mesmo assim só depois de muito tempo, e com uma mistura substancial de erro.

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aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna.
João 4:14

E quem tem sede, venha; e quem quiser, tome de graça da água da vida.
Apocalipse 22:17
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